Unidos de Padre Miguel abre a noite de ensaios técnicos

Por Gilvan Lopes Conteúdo Júlia Fernandes BackEnd Jaqueline Costa
Sinopse:
I
Agô!
É no sangue que corre a vida.
É o Axé que nos faz viver.
Orixá é cabeça da nossa força!
E do ventre da Iyá de todos nós, o Axé chegou de mãe para filha, de mãe para uma
nação.
A Iyá que legou ao mundo o vermelho-sangue da fé de pretas e pretos que matiza
nossa terra, nossa Vila Vintém, nosso pavilhão.
Hoje, os tambores do samba ecoam a tradição oral e um chamado ancestral,
conectando o Orun dos Orixás às raízes profundas da vida Iorubá.
E,pela força do Axé, se levanta o Boi Vermelho em um cortejo mágico para buscar a
exuberância de reinos encantados, filhos do ventre sagrado de Ialorixás que pairam
entre divindade e humanidade e que se fundem na gênese da criação Nagô.
O vento, em seus sussurros, revela o resplandecer do vermelho ardente, enquanto
grãos de areia acariciam o solo, testemunhando passos que acalentam as almas. No
céu, o orvalho se ergue como lágrimas de gratidão em honra ao Alafin. Na corte do
palácio, rainhas e princesas adornam o Adê do Rei com sua preciosa beleza.
Kaô Kabecilê Xangô!
Em Oyó-Ilé, a majestade resplandecia, refletindo a força dos segredos guardados
pelas Iyás. Suas vidas eram devotadas ao bem, como uma poesia eterna entoada aos
deuses. Os tesouros que teceram o Adê de Xangô se espalhariam pelo Brasil,
entrelaçando mistérios e ancestralidade.
II
Os raios de Oòrún e a luminosidade de Òsùpá testemunhavam os dias de esplendor
e as noites de glória que banhavam Oyó. Mas o horror dos ventos de imposta mudança
soprou impiedosamente com a fúria covarde de usurpadores, rasgando o tecido da
existência do império. No horizonte, uma travessia de dor, procissão ao desconhecido
dos filhos e filhas que carregariam o lume de outrora em seus corações.
Nas espumas do Atlântico, onde lágrimas se confundiram com ondas, a fé se ergueu
como velas a singrar os destinos através das águas turbulentas. O grivar daquelas velas
destronadas de Oyó apontava na direção de outros rumos. O legado de uma África
ancestral, entrelaçado com a coragem e determinação de uma princesa destemida,
desembarcou nas terras sagradas de Salvador. Seus passos trouxeram consigo
lembranças, afetos, saberes. Pulsava em seu peito a justiça e o Axé como um coração
vibrante: Iyá Nassô, a filha de Oyó sob o Oxê de Xangô.
O tecido vermelho que outrora adornava o trono do Alafin não se esvaneceu. Iyá
Nassô, guardiã e herdeira do sagrado segredo do Axé, o trouxe consigo, erguendo das
cinzas uma chama ardente de esperança alimentada pela fé inabalável em seus Orixás,
tornando-se um farol de resistência e resiliência para todos os seus descendentes.
III
Pela Ladeira do Berquó, Iyá Nassô, ao lado de outras princesas, protegidas pela força
invencível de AyráIntilé, consagraram a luz da tradição nas imediações da Capela da
Confraria de Nossa Senhora da Barroquinha. A fé se enraizou. Xangô, com seu trovão e
tempestade de justiça, abençoou e guardou Iyá Nassô, tecendo um manto de proteção
invisível, mas impenetrável.
E a resistência negra, nas vizinhanças católicas, se encontrou em irmandades,
confrarias e sociedades secretas de pretas e pretos que nunca esmoreceram. Firmado
um elo com suas irmãs de Ketu, Iyá Adetá e Iyá Akalá, e com a ajuda de outro
venerável que permaneceu ao seu lado, Babá Assiká, Iyá Nassô teria plantado o Axé,
semeando a fé primordial e dando o sopro da vida ao Candomblé no Brasil. Cada
lágrima derramada foi uma prece silenciosa que ecoou pelos corredores do tempo.
Entre os sussurros das noites escuras e os murmúrios dos dias sufocantes, as sementes
dos Orixás foram abençoadas no solo brasileiro, carregadas de esperança e coragem.
Sementes que, nutridas pela determinação e regadas pelo suor da devoção,
começaram a germinar. Cada cântico entoado, cada tambor ressoado e cada ritual
celebrado foi um ato de fé que fortaleceu as raízes dessa árvore sagrada. Nos
arredores da Barroquinha, o Ilê Iyá Omi Axé Ayrá Intilé se enraizou como um bastião
de esperança, uma fortaleza espiritual construída com os tijolos da ancestralidade e o
cimento da união de todas as nações.
Ayrá Ponon Opukodê!
No solo abençoado, onde a dor se transformou em força e a opressão se converteu
em resistência, a semente dos Orixás começou a florescer. As folhas de seus ramos
abrigaram os filhos e filhas da diáspora, oferecendo sombra e consolo. IV
Todavia, o preconceito, como uma doença, sempre estava à espreita, impregnando
os ares com intolerância. As religiões ancestrais, vivas nas almas dos negros e negras,
eram vistas com desdém pelos olhos cegos de brancos indoutos e desprezíveis. Diante
da injustiça e pela luta, o brado dos revoltosos! O grito dos Imalês ecoou pela noite,
marcando profundamente o coração maternal de Iyá Nassô.
Tendo os filhos perseguidos após a Revolta dos Malês, por professarem sua fé à
Xangô, Iyá Nassô, com a bravura destemida do machado de seu Orixá, interveio
bravamente por seus filhos e converteu a prisão deles em um retorno à África.
Assim, para sua terra ela voltou, levando consigo sua família, de sangue e de santo,
sacramentando a liberdade dos filhos e buscando mais aprendizados sobre a tradição
dos rituais dos Orixás, sua força vital.
Aqui, a semente plantada com tanto sacrifício permaneceu. Essa semente, enterrada
no solo fértil da Bahia de Todos os Santos, guardou a promessa de renascimento e
resistência, mistério de vida eterno que continuou a penetrar cada vez mais fundo no
solo, mantendo viva a chama da ancestralidade.
V
Anos depois, o mar, testemunha viva de idas e vindas, trouxe então de volta de Uidá
a sucessora filha-de-santo daquela que plantou a semente no solo baiano. Marcelina
Obatossi sentou-se no trono de Xangô, dando continuidade ao legado matriarcal de Iyá
Nassô, que ancestralizou em África. Obatossi, em seu caminhar, soprou a liberdade
para o babalaô Bamboxê Obitikô, guardião dos segredos de Ifá e do Xirê, ancestrais
que regaram o Axé plantado pela Mãe de Todos.
O terreiro foi consagrado com seu nome, agora em outra encosta, em outro morro
de fé. Reergueu-se como Ilê Axé Iyá Nassô Oká, consideradoo mais antigo terreiro de
Candomblé do Brasil, com a Casa para Xangô, o terreno para Oxóssi e o Axé de Oxum,
a tríade que compõe seus alicerces. Foi na Casa Branca do Engenho Velho, com os
assentamentos de Ayrá e de Oxóssi vindos da Barroquinha, que o Axé encontrou
refúgio definitivo sob a Coroa assentada de Xangô, um santuário construído com as
mãos calejadas da fé, à sombra do Bambuzal sagrado de Dankô e no acalanto das
águas de Oxum. Uma Casa onde Oríkì's sagrados ecoam pelos corredores.
De lá, as sementes continuaram a se espalhar pelo Brasil, pelo Rio de Janeiro e pela
Vila Vintém, e as festas do calendário espiritual da Casa são a presença viva do
matriarcado de Iyá Nassô.
VI
No próximo carnaval, essa semente dará muitos frutos em forma de homenagem
àquela que é considerada a Iyá de todos os Ilês, a Mãe de todos os terreiros. Que sua
história seja contada e celebrada com alegria, pois seu legado vive em cada toque dos
atabaques, em cada dança sagrada, em cada gesto de devoção aos Orixás. Que sua luz
continue a guiar os passos daqueles que buscam a verdadeira essência da fé e da
ancestralidade.
A comunidade vai cantar o pertencimento ao Egbé Iyá Nassô. Unidos, celebraremos
a força que nos guia, mantendo viva a chama do Axé e honrando o legado eterno de
nossas raízes. O espírito de Iyá Nassô até hoje floresce em cada canto, fazendo ecoar a
união que reverbera através dos tempos.
Assim, hoje o Egbé Vila Vintém bate seus tambores.
Somos mais uma Pequena África.
Somos mais um terreiro sagrado de Samba.
Somos o cortejo de um povo feliz.
Somos mais uma nação orgulhosa nascida do ventre do Axé.
Somos filhos e filhas das Mães Baianas.
Somos descendentes de Iyá Nassô e do machado da justiça de Xangô.
Somos Unidos nas cores das Áfricas e do nosso Orixá.
Somos o Branco de AyráIntilé e o Vermelho de Xangô.
Somos o Boi Vermelho que humildemente bate cabeça em reverência ao Ilê Axé Iyá
Nassô Oká.
Somos parte de uma comunidade de fé.
Aguerridos, somos EgbéIyá Nassô.
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Carnavalescos: Alexandre Louzada e Lucas Milato
Enredistas: Clark Mangabeira e Victor Marques
Texto da Sinopse: Clark Mangabeira e Victor Marques
Gratidão e devoção sempre à presença viva do Axé da tradição da Casa Branca do
Engenho Velho, que tanto nos ensinou e ensina, e agradecimento pelo auxílio e
colaboração mais do que especiais da pesquisadora pós-doutora e Ekedy Lisa Earl
Castillo.
___
Glossário:
Egbé – comunidade
Agô – pedido de licença
Iyá– mãe
Orun – céu
Adê – coroa
Oòrún – sol Òsùpá– lua
Oxê – machado de duas pontas, símbolo de Xangô
Oríkì’s – saudações aos Orixás e frases portadoras do Axé
Dankô- Orixá Senhor dos Grandes Bambuzais
Ayrá Ponon Opukodê – saudação: “Assim Ayrá ficará muito feliz”.
Kaô Kabecilê Xangô –saudação: “Venham saudar o Rei Xangô!” Oyó-Ilé – capital do
Império de Oyó. Alafin – título do rei do Império de Oyó Referências:
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Letra do Samba enredo
"Egbé Iya Nassô"
Autores: Thiago Vaz, W. Corrêa, Richard Valença, Diego Nicolau, Orlando Ambrósio,
Renan Diniz, Miguel Dibo, Cabeça do Ajx , Chacal do Sax, Julio Alves, Igor Federal, Caio
Alves, Camila Myngal, Marquinhos, Faustino Maykon e Claudio Russo.
Intérprete: Bruno Ribas
EIÊÔ! KAÔ KABECILÊ BABÁ OBÁ!
COURAÇA DE FOGO NO ORÔ DO VELHO AJAPÁ, RAÇA DO POVO DO ALAFIN,
E ARDE EM MIM,
RUBRO VENTRE DE OYÓ,
NA ESCURIDÃO, NUNCA ANDAREI SÓ
VOVÓ DIZIA: SANGUE DE PRETO É MAIS FORTE QUE A TRAVESSIA!
SAUDADE, QUE INVADE! FOI MARÉ EM TEMPESTADE
SOPRA A ANCESTRALIDADE NO MAR (Ê RAINHA)
PRECEITO É HERANÇA SEM MARTÍRIO
AIRÁ GUARDA SEUS FILHOS NO ILÊ DA BARROQUINHA
É A SEMENTE QUE A FÉ GERMINOU, IYÁ ADETÁ
O FRUTO QUE O AXÉ CULTIVOU, IYÁ AKALÁ,
IYÁ NASSÔ, Ê BABÁ ASSIKA, IYÁ NASSÔ, Ê BABÁ ASSIKA
VOU VOLTAR MAINHA, EU VOU, VOU VOLTAR MAINHA, CHORE NÃO, QUE LÁ NA BAHIA
XANGÔ FEZ REVOLUÇÃO
OXÊ
A DEFESA DA ALMA NA PALMA DA MÃO
NO CLÃ DE OBATOSSI, HÁ BRAVURA DE OXÓSSI NO MEU PANTEÃO
É D’OXUM O ACALANTO QUE GUARDA O OTÁ
DO VELHO ENGENHO, XIRÊ QUE MANTENHO NO MEU CAMINHAR
TOCA O ADARRUM QUE MEU ORIXÁ RESPONDE. OLORUM,
GUIA O BOI VERMELHO SEJA ONDE FOR GIRA SAIA AIABÁ, TRAZ AS ÁGUAS DE OXALÁ
JUSTIÇA DE OGODÔ, TAMBOR GUERREIRO FIRMA O ALUJÁ
AWURÊ OBÁ KAÔ! AWURÊ OBÁ KAÔ! VILA VINTÉM É TERRA DE MACUMBEIRO
NO MEU EGBÉ, GOVERNADO POR MULHER IYÁ NASSÔ É RAINHA DO CANDOMBLÉ!
Link do Samba Enredo da Unidos de Padre Miguel: