O cinquentenário (esquecido) de um documento do carnaval carioca

Por redação
No entanto, este não é o caso do Portal Sambrasil – Maior Portal de Notícias, Pesquisas, Entretenimentos e Referências sobre o Mundo do Samba, que através do jovem amigo e colaborador, Walter Pereira, sugeriu esta importante pauta. Extremamente significativa e especial informação para ser levada ao Mundo do Samba e do Carnaval. Então, esperamos agora, vésperas do Carnaval, o momento mais propício para publicarmos esta matéria especial em nossa coluna BiblioSamba.
Segue o texto de Walter Pereira:
Foi-se 2019 e um fato digno de nota não mereceu destaque. No ano passado completaram-se os cinquenta anos da publicação do primeiro livro dedicado exclusivamente às escolas de samba. Trata-se de Escolas de samba em desfile: vida, paixão e sorte, escrito por Amaury Jório e Hiram Araújo, obra de 1969.
Uma literatura sobre o samba do Rio de Janeiro começou em 1933 com a publicação de dois livros fortemente marcados pelas vivências dos autores, ambos jornalistas: Samba, de Orestes Barbosa e Na Roda do Samba, de Francisco Guimarães, o Vagalume. As escolas de samba (então recentes invenções recreativas do povo do samba), no entanto, não eram o objeto desses trabalhos. Elas seriam tratadas de forma tangencial em outros livros de destaque algumas décadas à frente. É o caso de História do Carnaval Carioca (1959) de Eneida de Moraes, onde são abordadas como elementos constituintes de uma cronologia da folia do Rio de Janeiro. O etnólogo Edson Carneiro também se aproximou do samba carioca e, na década de 50, dedicou alguns estudos às escolas de samba, consideradas fenômenos de “folclore urbano”. O trabalho renderia a publicação de textos, e culminaria na realização do Congresso Nacional do Samba e na redação da Carta do Samba (ambos em 1962), dentro do contexto da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, da qual Carneiro era o presidente no período.
Escolas de samba em desfile: vida, paixão e sorte dialogava com uma certa bibliografia sobre o samba, ainda que escassa na ocasião. Como explicam na introdução, Amaury e Hiram iniciaram suas pesquisas em 1966. Cabe aqui uma digressão sobre os autores. Ambos eram ligados à Imperatriz Leopoldinense, jovem agremiação com dez anos de existência. Amaury, farmacêutico com atuação em Ramos, era uma figura singular na região. Liderança de bairro, inclusive com passagem pela política da Guanabara – como suplente de deputado estadual – foi um dos fundadores da agremiação verde e branca do local, escola que chegou a presidir nos anos 60. Na década seguinte presidiria a Associação das Escolas de Samba da Guanabara. Dentre as causas que defendeu cabe destaque para a regulamentação dos direitos de transmissão do desfile das escolas, e a construção de uma passarela definitiva para os sambistas, o que não viu concretizado, pois faleceria antes do carnaval de 1980 (quando sua Imperatriz ganhou o primeiro título), portanto quatro anos antes da inauguração do Sambódromo de Brizola, Darcy e Niemeyer. Hiram Araújo era amigo de Amaury, e a convite dele ingressou nos quadros da Imperatriz em 1967. Lá, junto de outros companheiros, desenvolveram a noção de “departamento cultural”, instância responsável, no entendimento deles, por prover os meios da “elevação do nível cultural” dos componentes da escola. Além disso, abraçaram a elaboração, escrita e desenvolvimento de enredos bem embasados do ponto de vista da história e da literatura. Hiram era cirurgião e obstetra, e sem nunca ter se afastado da atividade médica, desenvolveu longa carreira como dirigente, pesquisador e escritor: foi diretor do departamento cultural e carnavalesco da Portela nos anos 70, e na década seguinte, como funcionário da Riotur, dirigiu o Museu do Carnaval, criando o pioneiro método de julgamento das escolas, além do curso de jurados. Encerrou suas atividades na área como diretor cultural da Liesa, onde implementou um Centro de Memória do Carnaval, falecendo em 2017.
O livro possui dois relevantes méritos. O primeiro foi ter abordado as escolas de samba, em toda sua complexidade, como um objeto à parte dos outros elementos constituintes do samba e do carnaval cariocas. O segundo é ser uma obra de conteúdo fortemente documental. Como atesta o prefácio assinado pelo jornalista Ilmar Carvalho, Vida, paixão e sorte se propõe a ser uma “enciclopédia”. A publicação traz o registro de nomes, fatos e episódios referentes a personagens, agremiações e entidades representativas do samba, a transcrição de documentos relevantes, além de propor uma reflexão analítica e crítica do tema.
O primeiro capítulo é dedicado ao que chamaram “estudo descritivo”. Amaury e Hiram, em um esforço pioneiro que atesta a originalidade do livro, empenharam-se em conceituar o que seria uma escola de samba. São elencadas as partes essenciais na constituição de uma agremiação carnavalesca para que pudesse ser nomeada “escola de samba”. Nesse inventário é analisado, por exemplo, o comportamento “geoeconômico das escolas”, segundo o qual as 44 atuantes naquele período estariam distribuídas nas seguintes categorias: super, grande, média e pequena. Assim, sabemos que, em 1969, a Beija-Flor de Nilópolis ainda era considerada uma escola média, ao lado de congêneres como a União de Vaz Lobo e a União do Centenário. Outro dado interessante é a categorização que fazem do elemento humano nas escolas. Os sambistas estariam divididos em componentes e dirigentes. Os primeiros atuariam em setores especializados (passistas, ritmistas, instrumentistas, compositores, puxadores, mestres-salas, porta-bandeiras e destaques), ou não especializados (sambistas masculinos e pastoras). A cada definição, são explicadas as origens e as trajetórias de cada um desses segmentos, e figuras notáveis de diversas agremiações são elencadas.

Hiram Araújo e Amaury Jório
Também no primeiro capítulo, os autores dedicaram-se a explicar do que se compunha a musicalidade das escolas de samba. São relacionadas dezenas de sambas de quadra e de enredo (e seus respectivos autores), bem como uma lista de partideiros eméritos do samba carioca. A identificação dessa tríade – partido-alto, samba de quadra (ou de terreiro) e samba de enredo – como aquelas modalidades responsáveis por darem peculiaridade ao samba gestado no Rio de Janeiro teria longa jornada. Atualmente os três tipos de samba são reconhecidos como as matrizes do samba carioca, e registrados como patrimônio nacional pelo Iphan desde 2007. Ainda nessa seção do livro, explica-se a parte administrativa das escolas, com seus segmentos e conselhos, para em seguida apresentarem uma lista de dezenas de nomes de sambistas dirigentes.
O capítulo 2 inicia com um breve histórico da Deixa Falar do Estácio, reconhecida como a origem das escolas de samba. Amaury e Hiram publicaram uma relação nominal de todas as escolas de samba que surgiram, desapareceram ou se fundiram, dando origem a novas agremiações. Daí em diante, ao longo de 84 páginas seguem-se fichas técnicas de 19 escolas atuantes no período, escolhidas entre as supers, grandes, médias e pequenas. Nessa seção são mencionados origens, fundadores, símbolos, carnavais (com enredos e colocações) e informações curiosas. A parte pode parecer descartável a um leitor mais desatento dos dias de hoje. Mas reflitamos: onde, em 1969, o interessado poderia encontrar um dado factual simples como a colocação da Mangueira no carnaval de 1934? A qual instrumento recorrer para saber, por exemplo, o contexto de fundação da Unidos de Bangu, ou os compositores mais atuantes da Unidos de Manguinhos? A publicação ocupava a lacuna que centros de documentação e arquivos não preenchiam na ocasião. Fontes sobre o carnaval carioca não estavam organizadas para consulta de maneira imediata. Assim é que o livro cumpria a função de registrar e documentar. Ele avança com informações históricas sobre todos os campeonatos das escolas de samba, e as entidades que congregavam as agremiações.
O terceiro capítulo é o mais claramente dedicado à documentação: são reproduzidos regimentos de concursos e projetos do mundo do samba, desde as “disposições gerais para os desfiles oficiais”, até a relação dos ganhadores de concursos como “cidadão samba” ou “flor da primavera”. O quarto e último capítulo propõe uma, assim nomeada, “análise crítica”, tentativa de diálogo com literatura de viés mais sociológico. Hiram e Amaury problematizam questões como a pureza, o crescimento das escolas, o gigantismo dos desfiles, o profissionalismo dos indivíduos, e o papel da remuneração dos sujeitos envolvidos. Para não que se reste dúvida do quão pitoresca é a obra, a seção final é dedicada a um glossário de gírias do mundo do samba carioca. A relação ficou a cargo do “doutor” Oswaldo Macedo, médico e sambista, presidente da Imperatriz Leopoldinense, peculiar figura ainda à espera de uma análise mais detida.
Assim, o livro merece ser problematizado como o pioneiro esforço de sistematização de dados e informações (raros) sobre as escolas de samba, bem como uma tentativa de interpretação do fenômeno. Hoje, ao alcance de um clique, seja o curioso ou o acadêmico têm acesso a um manancial de conteúdo sobre as agremiações. No entanto, é preciso lembrar que muito do que se tem reproduzido na grande rede, sem citação de origem, deve-se ao empenho primordial de pesquisa – em acervos e entrevistando pessoas – feito por pesquisadores como Amaury Jório e Hiram Araújo. Apesar do esquecimento ao qual foi submetido, não resta a menor dúvida: Vida, paixão e sorte é um importante documento, e atravessa cinco décadas nos convidando a múltiplas leituras.
Referências sobre o autor do texto:
Walter Pereira, Waltinho, como é carinhosamente conhecido, é filho do vice-presidente do Cacique de Ramos, Walter Pereira, e é coordenador do Centro de Memória “Domingos Félix do Nascimento” do Cacique de Ramos. Formado em História pela UFRJ, é mestrando em Memória e Acervos na Fundação Casa de Rui Barbosa, onde desenvolve pesquisa sobre Hiram Araújo, co-autor do livro Escolas de samba em desfile: vida, paixão e sorte.”.
- Bira Presidente e Waltinho – Acervo Cacique de Ramos
- Waltinho e Walter Pereira, pai e filho. Acervo Cacique de Ramos