Estação Primeira de Mangueira emociona o setor 01 neste sábado de ensaios técnicos

Por Gilvan Lopes Conteúdo Júlia Fernandes BackEnd Jaqueline Costa
Sinopse
Ouça o ruído do mar. Pense em quem foi saído de Cabinda, de Luanda, de Benguela.
Jogue o corpo pro centro do mundo. Prepare a mão pra bater, o pé pra riscar e o peito
para vibrar nos acordes e nos tremores do som. Desaterre a experiência dos bantus,
unidos pelos seus traços linguísticos, e criadores de uma sofisticada visão de mundo.
A sua própria leitura da realidade se manifesta no ciclo bakongo através da união do
mundo visível e do mundo invisível. Vida e morte fazem parte do mesmo ciclo; não se
anulam, complementam-se. Um entendimento sobre a existência que foi silenciado
pelo racismo, na ideia de superioridade dos pensamentos brancos e pelo
estabelecimento de uma outra forma predominante de refletir sobre a negritude.
Essa visão de mundo se reafirma contra as verdades históricas e contra o apagamento
da sua contribuição africana de uma cidade que não se limita nas fronteiras
tradicionais. O Rio também é o Atlântico. Pelo cais, o Rio também recebe o mar.
A água conduz as passagens e é no seu interior que estão guardados a memória e os
mistérios ancestrais. É possível ver o invisível submerso sob o espelho d’água,
conectando-se com as forças dos antepassados.
Nas kalungas, vida e morte se sobrepõem, dentre corpos, almas e inquices.
A terra absorve tudo o que nasce. É Kavungo. Anuncia memórias fincadas no solo, que
guardam as dores em busca de reparação dos pretos novos e pretas novas. As
entranhas subterrâneas revelam a verdade, expõem as marcas, devolvem o que se
tenta esconder e apagar o que está à flor da pele – À Flor da Terra! A ventania de
Kaiango governa os cursos espirituais, conduzindo caminhos. Finaliza e recomeça
destinos que fazem a passagem e podem assim retornar ao ciclo da vida.
Em Ku Nseke, plano terreno, território de contato, ressurge o choque de culturas. Era o
branco a própria morte, autoritário, que impõe a sua natureza e o seu feitiço de
dominação sobre as populações negras.
Desse lado do Atlântico, os irmãos de cor, juntos, pela comunhão, buscam reconfigurar
e estabelecer laços para promover afetos em vida. Irmanados pela ancestralidade,
pelas frestas da santíssima macumba e por diferentes modos de existir, os bantus se
fincam e transformam a sua realidade. Não de forma dócil ou ingênua, como
incorretamente ousaram dizer, mas sim complementar, ao absorver o que alimenta a
força vital. Agindo por si, com os outros.
Eles têm na natureza, nas ervas e nas plantas a sua essência espiritual, que se
manifesta nas ciências e em saberes requintados. Suas mãos curam, transformam,
criam e fazem do seu trabalho um lugar no mundo, espaço de viver e exercer parte de
seu conhecimento trazida como bagagem.
São ferreiros, quituteiras, barbeiros, aguadeiras, trabalhadores urbanos e do porto,
agentes da liberdade, seja pela compra ou pela luta, fundamentando uma outra
experiência, que possibilita o trânsito e a circulação como sujeito da cidade.
Sujeito que também soube triunfar e enaltecer sua altivez em glória pelos caminhos do
Rio.
Nos zungus, locais de intensa convivência, essa negritude, liberta ou não, recebe,
acolhe, festeja, transbordando ancestralidade, imprimindo suas marcas em sua forma
de viver e de se organizar em sociedade. Panos brancos tremulam aos ventos nas
janelas dessas habitações, anunciando refúgio aos necessitados.
Os povos bantus são capazes de reconstruir sua terra em qualquer espaço. Com as
relações comunitárias, modificam o lugar, negociam e entrelaçam culturas. Modelam
novos territórios, forjam novas práticas e hábitos. Apoderam-se afrontosamente do
Rio, agregando outros saberes para reformular as suas próprias experiências.
Ao ocupar a cidade, as contribuições dos bantus se diluem e pulsam na identidade
negra do território carioca. Tagarelamos, comemos, tocamos e dançamos conforme as
heranças e as tradições desses povos. Ter um dengo, criar um moleque, reunir-se em
kilombo, ir pra macumba, pedir na umbanda, bailar como nos lundus, comer um
quiabo pra não pegar um feitiço, cozinhar com fubá, mergulhar no dendê, fazer um
batuque, chocalhar um ganzá, tomar cachaça. De boca em boca, mais do que palavras,
práticas também são passadas de gerações para gerações. Esses conhecimentos
fundamentais atravessam o tempo, cruzam o espaço e se revelam no cotidiano de um
Rio de Janeiro tão efervescente.
Além de arquivo a céu aberto, a rua guarda as memórias, as dores, as paixões e as
lutas dos bantus. Diferentes formas de existir se fazem presentes nas esquinas, ruas,
vielas, por onde circulam herdeiros desses povos recriando saberes e constituindo a
vida de forma revolucionária.
Das cicatrizes de uma cidade caótica, surgem flores que promovem o horizonte negro.
Ao andar pelo Rio, movimentar a vida, balançar o corpo, propagar conhecimentos,
ensinar valores, cria-se uma forma de restabelecer conexões através do futuro
ancestral. Com feridas abertas de um passado presente, persistem desaparecimentos,
silenciamentos e apagamentos de uma juventude marginalizada e negra, que abre
novas frestas desejando as venturas do mundo.
Olhe o céu. Escute o trânsito das kalungas. Pense na pipa e no barulho da rua. Sente os
sons graves e ruidosos que estão no dia a dia carioca. Ouça os toques d’Angola, o
tamborzão e a batida do funk. Prove esse solo aterrado de memória sabendo que o
samba macumbado no couro da mão tem razão de ser. A cidade se veste de branco
nas renovações de ciclo. A cidade continua. A cidade festeja a vida para se encantar
dela. A cidade ousa viver e construir futuro. Tem uma nova chance a cada alvorada, a
cada cria, a cada sol, que nasce todo dia desse mesmo chão, carregando consigo as
experiências dos seus mais velhos e reinventando a liberdade.
Atrevida por natureza e banhada da ancestralidade bantu, a alma carioca desafia a
morte, celebra a vida e faz carnaval!
Enredo: Sidnei França
Pesquisa e Texto: Sidnei França, Ariel Portes, Felipe Tinoco e Sthefanye Paz
Samba Enredo:
À FLOR DA TERRA – NO RIO DA NEGRITUDE ENTRE DORES E PAIXÕES
Autores: Lequinho, Júnior Fionda, Gabriel Machado, Júlio Alves, Guilherme Sá,
Paulinho Bandolim.
Intérpretes: Marquinho Art’ Samba e Dowglas Diniz
SOU LUANDA E BENGUELA
A DOR QUE SE REBELA, MORTE E VIDA NO OCEANO
RESISTÊNCIA QUILOMBOLA DOS PRETOS NOVOS DE ANGOLA
DE CABINDA, SUBURBANO
TRONCO FORTE EM RIBANCEIRA,FLOR DA TERRA DE MANGUEIRA
REVEL DO SANTO CRISTO QUE CONDENA
MISTÉRIO DAS KALUNGAS ANCESTRAIS
QUE O TEMPO REVELOU NO CAIS
E FEZ DO RIO MINHA ÁFRICA PEQUENA
Ê, MALUNGO, QUE BATE TAMBOR DE CONGO
FAZ MACUMBA, DANÇA JONGO, GINGA NA CAPOEIRA
Ê, MALUNGO, O SAMBA ESTANCOU TEU SANGUE
DE VERDE E ROSA RENASCE A NAÇÃO DE ZAMBI
BATE FOLHA PRA BENZER, PEMBELÊ, KAIANGO
GUIA MEU CAMUTUÊ, MÃE PRETA ENSINOU
BATE FOLHA PRA BENZER, PEMBELÊ, KAIANGO
SOB A CRUZ DO SEU ALTAR INQUICE INCORPOROU
FORJADO NO ARREPIO DA LEI QUE ME FEZ VADIO
LIBERTO NA SENZALA SOCIAL
MALANDRO, ARENGUEIRO, MARGINAL
NA GIRA, JOGO DE RONDA E LUNDU
ONDE A ESCOLA DE VIDA É ZUNGU, FUI RISCO IMINENTE
O ALVO QUE A BALA INSISTE EM ACHAR
LAMENTO INFORMAR… UM SOBREVIVENTE
MEU SOM POR VOCÊ CRITICADO
SEMPRE CENSURADO PELA BURGUESIA
TOMOU A CIDADE DE ASSALTO
E HOJE NO ASFALTO A MODA É SER CRIA
QUER IMITAR MEU RISCADO, DESCOLORIR O CABELO
BATER CABEÇA NO MEU TERREIRO
É DE ARERÊ, FORÇA DE MATAMBA
É DELA O TRONO ONDE REINA O SAMBA
SOU A VOZ DO GUETO, DONA DAS MULTIDÕES
MATRIARCA DAS PAIXÕES, MANGUEIRA
O POVO BANTO QUE FLORESCE NAS VIELAS
ORGULHO DE SER FAVELA
Link do Samba Enredo da Estação Primeira de Mangueira 2025: