Beija-Flor lança sinopse de enredo criado pela comunidade em exaltação à intelectualidade negra
Por Redação
Anunciado no início do mês, em meio às mobilizações contra o racismo que se espalharam pelo mundo, o enredo da Beija-Flor de Nilópolis para o próximo Carnaval ganhou neste domingo uma sinopse oficial. Elaborado coletivamente, o texto reúne contribuições de membros da comunidade e indica o caminho a ser seguido no desenvolvimento do tema, que vai exaltar a intelectualidade negra na Marquês de Sapucaí. O lançamento, promovido por meio das redes sociais, envolveu ainda a divulgação da logomarca escolhida em um concurso para ilustrar o enredo “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”.
— É uma honra muito grande estar na Beija-Flor para viver esse momento. Fui arrebatado pelo tema. O enredo partiu do anseio da nossa comunidade e de todo o mundo do Carnaval de que Beija-Flor siga levantando essa bandeira, que ela já permeia toda a sua história — comemorou o carnavalesco Alexandre Louzada, que será responsável pelo desenvolvimento do desfile: — Sei que, nessa empreitada, tenho que empretecer meu pensamento. Isso envolve me colocar numa posição de humildade e estudar a melhor maneira de trabalhar.
Grandes mentes pretas
A sinopse, disponibilizada em vídeo e texto na internet, foi elaborada pelo jornalista João Gustavo Melo. Enredista com quase 20 anos de experiência no Carnaval, João Gustavo já trabalhou no desenvolvimento de mais de 40 enredos e está em seu primeiro trabalho junto a Beija-Flor.
Na criação do texto, o profissional recebeu sugestões de integrantes da agremiação e as aprofundou com o apoio de referências bibliográficas que incluem obras de personalidades negras. Entre elas, estão a escritora Carolina Maria de Jesus; o jornalista e sociólogo Muniz Sodré; a filósofa e escritora Djamila Ribeiro; a jornalista e economista Flávia Oliveira e o cantor e compositor Emicida.
O resultado final da sinopse inclui ainda uma mensagem de abertura e um epílogo. Junto com a descrição textual do enredo, foi divulgada a logomarca escolhida entre mais de 100 opções criadas a pedido da escola por seus componentes e admiradores. A imagem conjuga as faces negras de um homem e de uma mulher. Rostos como os deles compõem 53,9% da população brasileira, autodeclarada preta e parda de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
— Inspirado no movimento afrofuturista, foram usados poucos elementos para este retrato: a transição, em rostos que se completam, entre o ancestral que nos negam e o futuro que nos impedem. Os pensadores angolanos sustentam um título de forma a remeter os pôsteres de apoio a Angela Davis (filósofa) no movimento antirracista americano. Sim, empretecer o pensamento é pensar como Angola, como a África; empretecer o pensamento é enaltecer os seus, os nossos — justificou André Rodrigues, criador da peça artística ganhadora do concurso.
Devido à pandemia da Covid-19 e seus desdobramentos, o calendário de criação do próximo desfile da Beija-Flor tem sido remanejado pela escola para preservar a saúde de todos os seus apaixonados. Por isso, todo a elaboração e divulgação do enredo foram conduzidas virtualmente, respeitando medidas de distanciamento social. O mesmo cuidado ocorrerá em outras etapas do processo de construção do desfile, enquanto for necessário.
CONFIRA A SINOPSE ABAIXO
BEIJA-FLOR DE NILÓPOLIS
“Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”
Razão de cantar feliz é poder nos reconhecer através das histórias que revelam a nossa essência. REPRESENTATIVIDADE é fazer parte de uma bandeira de arte e de luta que é exemplo para o nosso povo. É como gostamos de nos ver refletidos. Quem vê a fragilidade do voo de um beija-flor nem sequer imagina quantas vezes o coração bate e qual o tamanho do esforço para chegar à flor. É assim que se dá a ligação entre a bandeira nilopolitana e o nosso povo. É pela alegria e pelo prazer de brilhar na Avenida que superamos as dificuldades vividas durante o ano para no Carnaval sermos a referência de um Brasil mais africano.
A marca de vencer tantos carnavais já nos fez vestir muitas glórias. Porém, muito mais que isso, acreditamos que nossa sina é a afronta, o debate e a provocação artística. É cumprir todo ano a romaria, da Baixada à Avenida para fazer o povo protagonista e proporcionar o destaque que o Brasil sempre nos negou. Olha em volta, é hora de mais um acerto com a história, nosso povo de novo acordou e só está aguardando razão de cantar feliz o ressoar do som do teu tambor.
Sinopse
Este enredo é de autoria coletiva. Foi escrito pelas mãos, vozes e memórias de cada componente da nossa comunidade.
A imagem do Pensador, a bela estatueta do povo tchowkwe, que habita a região Nordeste de Angola, inspira-nos a levar para a Avenida um enredo sobre a contribuição intelectual negra para construção de um Brasil mais africano. Nossa civilização conhece e respeita os pensamentos esculpidos em mármore greco-romano. Mas por que não talhar os saberes em ébano? Empretecer o pensamento do mundo é dar a toda a humanidade a oportunidade de uma visão diferente e original, com novos caminhos para o futuro, estabelecendo outras rotas possíveis.
Ao longo do tempo, foram grafadas em pedras duras imagens estereotipadas da África como um ajuntamento de sociedades tribais destituídas de pensamentos e tecnologias. Isto nos impede de ver o legado e a diversidade dos povos e refletir sobre a possibilidade de empretecer o conhecimento humano.
Muitas vezes enquadrada no campo do primitivo e do exótico, nossa forma sofisticada de ver o mundo é desvalorizada por estruturas coloniais racistas que desprezam a riqueza intelectual que produzimos.
Por isso, mais do que nunca, é hora de inspirar mentes, trabalhar pelo “reencantamento” de tudo, e talhar em madeira forte nossos saberes, feito sementes espalhadas por soberanos pássaros de ébano.
“No caminho da luz, todo mundo é preto”
(Emicida)
A diáspora do pensamento negro é um jogo de espelhos que faz refletir por muitas e muitas terras, povos e gerações o valor da nossa gente. Um negrume multicor que construiu monumentos em eras gloriosas, e que também passou a sofrer constantes tentativas de apagamento e silenciamento. Mas o legado dos nossos ancestrais persiste nas cores e nas formas que se afirmam pujantes, assim como a saga do nosso povo. Em muitos tons de negro, erguemos totens, esculpimos imagens de adoração de muitas fés, trançamos palha e fibra, entrelaçamos referências, bordamos a geometria das coisas e dobramos o tempo. Como num colar multicor, colocamos nos fios das artes visuais as mais raras pérolas e as contas mais sagradas dos nossos antepassados.
A costura de um tecido de pensamentos sofisticados se dá a partir dos ensinamentos dos antigos para constituirmos a “afrosofia” de hoje. Em memórias transmitidas de geração a geração, somos sujeitos de poder, guiados pelos ancestrais. Produzimos jeitos diversos de pensar o sentido de um mundo plural, mesmo que máscaras brancas sejam colocadas sobre a pele negra. Falamos e escrevemos em bom “pretuguês”, para o mundo inteiro ouvir, o valor das nossas reflexões que se desdobram em ações afirmativas. A voz da intelectualidade altiva e forte se ergue contra as desigualdades, propondo novos caminhos para transformar a realidade em que vivemos. É o levante quilombista em nome de uma sociedade mais justa!
A escrita de nós sobre nós faz emergir uma literatura que não se limita à entronização de heróis coloniais. Nossos personagens são escritos nas frestas, somos filhas e filhos do cotidiano e do épico, da dor e do prazer, dos movimentos sociais e das reflexões coletivas. As fraturas do processo escravocrata se manifestam na inquietação das palavras de azeviche. Imagens “poétnicas” de potência avassaladora, original e amplificadora de sentimentos e revoltas. São faíscas literárias que encandeiam ideias retintas e permitem reescrever mais e mais Brasis.
Sob as luzes – e às vezes sob as sombras – da ribalta, encenamos a liberdade como texto primordial. Nos palcos do Teatro Experimental do Negro, invocamos a energia vital dos antepassados, espelhando a fúria e a brandura das divindades. Alegria e manifestação! Articulações engajadas fazem com que se multipliquem nomes e mais nomes entre a “grande constelação das estrelas negras”. São a essência do vigor dos nossos passos, da expressão maior dos nossos sonhos e dos nossos corpos instruídos de energia e técnica. Somos constante movimento, pois somos filhos de deuses que dançam!
Agora cessem tudo o que antiga musa canta, porque uma flor nasceu no asfalto… E será cortejada por um pássaro de ébano, mestre-sala dos ventos a lufar sementes do samba, criação preta em essência. Filosofia em tambor sincopado que se transformou no maior espetáculo do ayê. Que possamos celebrar a arte que se afirma em cada Carnaval quando uma voz canta e um corpo responde “ao ressoar do som de um tambor”.
Maravilhosa e soberana é a nação que anualmente ritualiza e espalha seus saberes ancestrais. Em Apoteose, vamos elevar nosso cantar feliz a Cabana, o pensador de ébano que, com suas composições e enredos, ajudou a esculpir o Beija-flor no terreiro sagrado do Carnaval.
A ele e todos os ancestrais do samba, dedicamos nosso desfile, exaltando a memória e o trabalho intelectual do povo preto, e evocando o símbolo adinkra do pássaro que, com os pés fincados no chão, olha para trás para poder agir no presente e seguir rumo ao futuro.
Epílogo
A Beija-Flor de Nilópolis, como referência cultural formada essencialmente pelo povo negro da Baixada Fluminense, ao voltar a propor um enredo tendo foco central a intelectualidade negra, reafirma as pautas sociais cujas demandas passam pela defesa do sistema de cotas raciais e pelo cumprimento da Lei 10.639 (atualizada pela Lei 11.645), que trata da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas. Repudia ainda qualquer discriminação religiosa contra o nosso povo, reafirmando a laicidade do Estado brasileiro. E, por fim, torna-se mais uma voz a se levantar contra a violência no país, que tem atingido especialmente corpos negros, vítimas do racismo estrutural que vigora no país. Basta! Seus filhos já não aguentam mais!
Referências: vozes e escritas
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